quinta-feira, 31 de julho de 2008

A Coerência do Ordenamento Jurídico: O Problema das Antinomias

1 INTRODUÇÃO


O ordenamento jurídico é o Direito positivado em um conjunto de prescrições normativas ordenado hierarquicamente, que derivam dos fatos valorados pela sociedade. Em um cenário dinâmico, de constante mutação, essas prescrições variam de acordo com os fatos sociais, históricos, econômicos e regionais.
A problemática do ordenamento jurídico está em conciliar a constante mutação da sociedade, com a incompatibilidade que surge na criação das normas.
A essa incompatibilidade, dá-se o nome de antinomia, que poderá ser resolvida aplicando critérios ora cronológicos, ora hierárquicos, ou ainda critérios de especialidade, não obstante essas antinomias poderão originar conflitos entre critérios, no intuito de manter a coerência do ordenamento jurídico.
O que se pretende esclarecer é que apesar de existir incompatibilidade entre as normas, o ordenamento jurídico não entra em colapso, e essas antinomias podem ser resolvidos, como veremos a seguir.


2 O ORDENAMENTO JURÍDICO COMO SISTEMA


O ordenamento jurídico além de ser uma unidade, também constitui um sistema, entende-se por sistema um conjunto de organismos, entre os quais existe certa ordem. Para o ordenamento jurídico constituir um sistema, as normas que o compõe devem estar em relação de compatibilidade entre si, “sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo”.
Segundo a análise feita por Kelsen, existem dois tipos de sistemas: estático e dinâmico.
Sistema estático é aquele em que as normas estão ligadas entre si em relação ao seu conteúdo, ou seja, elas se deduzem umas das outras partindo de uma norma originária de caráter geral.
Sistema dinâmico é aquele onde as normas que o compõe derivam umas das outras, onde uma norma inferior deriva sempre de uma norma superior até atingir a autoridade suprema, independente do seu conteúdo, onde se verifica que esse tipo de ordenamento normativo não é material, mas sim formal.
Kelsen sustenta que os ordenamentos jurídicos são sistemas dinâmicos. Se, se deseja falar em sistema normativo em relação ao Direito, deve-se verificar sob que condições, em que sentido, e dentro de quais limites se apresenta o sistema normativo.


2.1 Três significados de sistema


Um primeiro significado expressa que determinado ordenamento é um sistema, onde todas as normas derivam de alguns princípios gerais, tal acepção refere-se ao ordenamento do direito natural.
O segundo significado de sistema origina-se de dados fornecidos pela experiência com base na semelhança, para formular conceitos gerais criando um sistema empírico ou indutivo.
O terceiro significado é aquele em que o ordenamento jurídico constitui um sistema porque nele não podem coexistir normas incompatíveis, onde havendo a incompatibilidade uma das duas ou ambas as normas devem se eliminadas, sem que isso leve ao colapso do sistema, pois se devem analisar as partes singularmente consideradas desse ordenamento.
As normas incompatíveis receberam uma denominação característica própria: antinomia, que será analisada a seguir.




3 AS ANTINOMIAS


Segundo Maria Helena Diniz, “Antinomia é o conflito de duas normas, dois princípios ou de uma norma e um princípio geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular”. E Hugo de Brito Machado, complementa o conceito dizendo que só se pode falar em antinomia entre “duas prescrições jurídicas quando pertencentes ambas ao mesmo ordenamento jurídico, e tendo ambas o mesmo suporte fático”.


3.1 Vários tipos de antinomias


Para que se possa haver antinomia são necessárias duas condições:
1. As normas devem pertencer ao mesmo ordenamento. Caso elas pertençam a ordenamentos diferentes, só existirá antinomia se os ordenamentos forem dependentes entre si apresentando uma relação de subordinação ou coordenação.

2. As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade, elas devem coincidir em relação à:
a)Validade temporal;
b)Validade espacial;
c)Validade pessoal;
d)Validade material.

As antinomias dividem-se em três diferentes tipos:
1.Se duas normas incompatíveis têm igual âmbito de validade, a antinomia pode ser denominada total-total.

2.Se duas normas incompatíveis têm âmbito de validade em parte igual e em parte diferente, a antinomia subsiste somente para aquela parte que elas têm em comum, e pode denominar-se parcial-parcial.

3.Se de duas normas incompatíveis, uma em um âmbito de validade igual ao da outra, porém mais restrito, ou, em outras palavras, o seu âmbito de validade é em parte igual, mas também em parte diferente em relação ao da outra, a antinomia é total por parte da primeira norma em relação à segunda, e somente parcial por parte da segunda em relação à primeira, e pode denominar-se total-parcial.


3.2 Critérios para solução das antinomias.


Existem dois tipos de antinomias: as solúveis ou aparentes, e as insolúveis ou reais.
As regras fundamentais para a solução das antinomias solúveis ou aparentes são:
a)O critério cronológico;
b)O critério hierárquico;
c)O critério da especialidade.

O critério cronológico, também chamado de lex posterior, é aquele com base no qual, de duas normas incompatíveis, prevalece àquela sucessiva: lex posterior derogat priori.

O critério hierárquico, também chamado de lex superior, é aquele com base no qual, de duas normas incompatíveis, prevalece aquela hierarquicamente superior: lex superior derogat inferiori. A inferioridade de uma norma em relação a uma outra consiste na menor forma de seu poder normativo, sendo que as normas superiores podem ab-rogar as inferiores.

O critério da especialidade, chamado precisamente de lex specialis, é aquele com base em que, de duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial, prevalecem à segunda: lex specialis derogat generali. Lei especial é aquela que derroga uma lei mais geral, ou seja, que subtrai a uma norma uma parte de sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diversa.

A situação de antinomia, criada a partir da relação entre uma lei geral e uma lei especial é aquela do tipo total-parcial, significando que, quando se aplica o critério da especialidade, não ocorre a eliminação total de uma das normas, mas apenas de parte da lei mais geral que é incompatível com a lei especial. Quando se aplica o critério cronológico ou o critério hierárquico em geral se tem a eliminação total de uma das duas normas. O que significa que os dois primeiros critérios, cronológico e hierárquico, se aplicam quando surge uma antinomia; e o terceiro, da especialidade, se aplica porque passa a existir uma antinomia.


3.3 Insuficiência dos critérios.


O critério cronológico se aplica quando duas normas incompatíveis são sucessivas; o critério hierárquico se aplica quando duas normas incompatíveis estão em níveis diferentes do ordenamento; e o critério da especialidade se aplica quando o conflito existe entre uma norma geral e uma norma especial. Entretanto, há casos em que se verifica uma antinomia entre duas normas: 1) contemporâneas; 2) no mesmo nível; 3) ambas gerais.

Quando ocorre um conflito entre duas normas em que não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a solução fica confiada à liberdade do intérprete: pode-se falar em um poder discricionário do intérprete, que poderá decidir livremente pela solução do conflito segundo a oportunidade, sendo assim, o intérprete, tem diante de si três possibilidades para a solução do conflito:
1.eliminar uma delas;
2.eliminar as duas;
3.conservar as duas.

3.4 Conflito dos critérios.


Como já foi dito anteriormente, existem antinomias insolúveis ao lado de antinomias solúveis, e as razões pelas quais existem antinomias insolúveis são duas: ou a inaplicabilidade dos critérios, ou a aplicabilidade de dois ou mais critérios em conflito.
Vimos também, que os critério para solução das antinomias são três: cronológico, hierárquico, e da especialidade. Entretanto, pode ocorrer que entre duas normas incompatíveis possam ser aplicados ao mesmo tempo dois ou três critérios de solução, nesse caso, temos uma incompatibilidade de segundo grau, não se trata mais de uma incompatibilidade entre normas, mas sim de incompatibilidade entre critérios.

Os conflitos entre critérios podem ser três:
1.Conflito entre o critério hierárquico e o critério cronológico: o critério hierárquico prevalece sobre o critério cronológico, o que tem por efeito fazer com que se elimine a norma inferior, ainda que esta seja sucessiva. O critério cronológico é válido para duas normas no mesmo plano de hierarquia, quando duas normas estão em planos distintos, prevalecerá o critério da distinção dos planos.

2.Conflito entre o critério da especialidade e o critério cronológico: nesse caso prevalecerá o critério da especialidade, pois uma lei geral sucessiva, não elimina uma lei especial anterior.

3.Conflito entre o critério hierárquico e o critério da especialidade: são dois critério fortes entre si, não existe uma regra geral para esse tipo de conflito. A solução dependerá do intérprete de acordo com cada caso isolado, podendo ora prevalecer um critério, ora outro. A gravidade do conflito se apresenta pelo fato de estar em jogo dois valores fundamentais do ordenamento jurídico, o que diz respeito a superioridade hierárquica da lei, e o que diz respeito à justiça, pois o critério da especialidade surge da constante adaptação do direito para atender as demandas da sociedade.


4 O DEVER DA COERÊNCIA


A compatibilidade não é condição de validade da norma no ordenamento jurídico, pois pode haver normas incompatíveis sendo ambas válidas, porém se forem incompatíveis jamais ambas terão eficácia no caso concreto.
O dever da coerência de um ordenamento jurídico não é condição de validade, mas sim condição para veicular a justiça no ordenamento jurídico.


5 CONCLUSÃO


Concluímos que o ordenamento jurídico, apesar do problema das antinomias apresenta coerência. Quando surgem as antinomias sua solução dar-se-á pelos critérios: cronológico, hierárquico, ou da especialidade, se estas forem solúveis, sendo estas insolúveis, contar-se-á com a discricionariedade do intérprete.
Mesmo apresentando antinomias, o que se verifica é que as mesmas não causam o desmoronamento do sistema, mantendo assim uma determinada ordem.







REFERÊNCIAS


BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MACHADO, Hugo de Brito. Uma Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Dialética, 2000.

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